O recente Decreto 6.727/2009 revogou a alínea ‘f’ do parágrafo 9º do artigo 214 do Decreto 3.048/99 e teve como objetivo retirar da legislação o último dispositivo que declarava expressamente a não-incidência da contribuição previdenciária sobre o aviso prévio indenizado. Isso porque a Lei 8.212/91, que originalmente previa a não-incidência sobre o aviso prévio indenizado (artigo 28, parágrafo 9º, ‘e’), foi alterada pela Lei 9.528/97, que fez com que o dispositivo deixasse de mencioná-la.
Com isso parece ter sido objetivo do Governo Federal dar sustentação a um antigo entendimento pela incidência das contribuições previdenciárias sobre o aviso prévio indenizado, ao fundamento de que integra o tempo de serviço trabalhado. Tentativas similares foram feitas no passado, por via de instruções normativas.
Embora interfira diretamente na base de cálculo da contribuição devida pelo empregado, a revogação traz reflexos também para a contribuição devida pelo empregador sobre as remunerações (artigo 22, I da Lei 8.212/91), resultando num novo aumento da carga tributária que assola as parcelas pagas pelos empregados e empregadores para custeio da Previdência Social.
Com efeito, é tradicional o entendimento da fiscalização, retratado em inúmeros julgados do Poder Judiciário, que todos os pagamentos feitos pela empresa, independentemente da sua natureza, se submetem à contribuição, a não ser que estejam expressamente excluídos por disposição inequívoca da legislação.
No entanto, em nosso Direito, a estrita legalidade tributária em sua feição material (CF; artigo 150, I e CTN; artigo 97), suportada pelo princípio maior da segurança jurídica (CF; 5º, caput), impõe que o fato gerador e a base de cálculo dos tributos sejam determinados positivamente, ou seja, a lei deve prever e qualificar exaustivamente suas características, permitindo assim a perfeita subsunção dos fatos à norma jurídica a ensejar o nascimento da obrigação tributária. Este delineamento da hipótese de incidência deve, ainda, estar suportado pela norma de competência, ditada pelo Texto Constitucional.
Trata-se da importante distinção entre imunidade (regra de incompetência, ditada pelo Texto Constitucional, para contrapor à regra de competência determinada pela própria Constituição), isenção (exclusão da hipótese de incidência, em que pese constar da norma de competência, por razões diversas) e não-incidência natural, ou seja, fatos situados fora do âmbito de competência do ente que deseja instituir a tributação (o que não é remuneração não precisa ser isentado pela lei, pois já está naturalmente excluído, por não se enquadrar no conceito que desenha a competência para tributar). A não-incidência natural é um nada jurídico (Sacha Calmon).
No que toca à contribuição do empregador sobre as remunerações, a regra de competência do artigo 195, I, ‘a’ da Constituição definiu como fato tributável apenas parcelas de natureza remuneratória, e não indenizatória. Logo, conforme explicita o artigo 110 do CTN, não pode a lei ou o seu aplicador alterar tal conceito e, como visto, sendo o aviso prévio indenizado (i.e., o pagamento feito pelo empregador que dispensa o empregado de cumprir mais um mês de trabalho após a sua dispensa) definido como parcela de caráter indenizatório e não remuneratório pela CLT, impossível a incidência da contribuição sobre o mesmo.
Por isso o artigo 22, I da Lei 8.212/91 define como base de cálculo “o total das remunerações pagas destinadas a retribuir o trabalho”, o que faz com que as parcelas indenizatórias estejam fora do âmbito de incidência da norma tributária dela extraída.
Interpretar o parágrafo 2º do artigo 22 da Lei 8.212/91 de forma a incluir todo e qualquer pagamento feito ao empregado, independentemente da sua natureza, na base de cálculo da contribuição do empregador extrapola não apenas a definição legal do artigo 22, I da Lei 8.212/91, como também altera a regra de competência constitucional.
Por isso a jurisprudência sempre se fundou na natureza da verba, e nunca na existência de previsão legal de sua exclusão, para fixar a não-incidência da contribuição do empregador sobre o aviso prévio indenizado.
Nesse sentido o entendimento do STJ:
“As verbas de natureza salarial pagas ao empregado a título de auxílio-doença, salário-maternidade, adicionais noturno, de insalubridade, de periculosidade e horas-extras estão sujeitas à incidência de contribuição previdenciária. Já os valores pagos relativos ao auxílio-acidente, ao aviso-prévio indenizado, ao auxílio-creche, ao abono de férias e ao terço de férias indenizadas não se sujeitam à incidência da exação, tendo em conta o seu caráter indenizatório. (...)” (STJ, 1ª Turma, REsp. nº 973.436/SC, Rel. Min. José Delgado, DJ 25/02/2008)
Também é a posição dos TRF’s:
“Não incide contribuição previdenciária sobre verbas pagas a título de aviso prévio, por não comportarem natureza salarial, mas terem nítida feição indenizatória” (TRF1, 8ª Turma, AC nº 1998.35.00.007225-1/GO, Rel. Juiz Federal MARK YSHIDA BRANDÃO, e-DJF1 20.06.2008)
“Por expressa determinação legal, não integram o salário-de-contribuição as rubricas relativas ao vale-transporte, auxílio-creche, abono de férias, férias indenizadas, terço constitucional de férias e aviso prévio indenizado, cabendo à parte impetrante compro-var a existência de recolhimentos indevidos atinentes a essas rubricas. Sem essa pro-va, não há direito líquido e certo a ser amparado por mandado de segurança” (TRF4, 1ª Turma, APC nº 2007.71.08.004891-1, Rel. Des. Federal MARCELO DE NARDI, j. em 24/09/2008)
Portanto, todos os pagamentos que não se qualificarem juridicamente como remuneração pelo trabalho, de repercussão nitidamente salarial, não se enquadram na previsão legal que conceitua a base de cálculo da contribuição. E esse é justamente o caso do aviso prévio indenizado, que não tem natureza remuneratória, mas sim indenizatória. Assim ensina o Ilustre professor Maurício Godinho Delgado, hoje ministro do TST:
“O pagamento do aviso prévio prestado em trabalho tem natureza nitidamente salarial: o período de seu cumprimento é retribuído por meio de salário, o que lhe confere esse inequívoco caráter.
Contudo, não se tratando de pré-aviso laborado, mas somente indenizado, não há como insistir-se em sua natureza salarial. A parcela deixou de ser adimplida por meio de labor, não recebendo a contraprestação inerente a este, o salário. Neste caso, sua natureza indenizatória inequivocamente desponta, uma vez que se trata de ressarcimento de parcela trabalhista não adimplida mediante a equação trabalho/salário.”
Em suma, de nada adianta declarar a incidência ou não-incidência tributária sobre fato que já está fora do âmbito da norma jurídica, pois a impossibilidade de tributar aquela parcela já foi definida na origem, pelo próprio texto constitucional, que cercou o campo de competência por onde poderia atuar aquele que deseja instituir a tributação.
A jurisprudência pátria, mesmo após o ano de 1998, quando a Lei 8.212/91 deixou de prever a não-incidência aqui comentada, continuou afirmando que o aviso prévio indenizado não se submete à tributação. Eis o seguinte julgado do TRT da 3ª Região:
“EMENTA: CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA- AVISO PRÉVIO INDENIZADO – NÃO INCIDÊNCIA - Não há incidência de contribuições previdenciárias sobre os valores referentes ao aviso prévio indenizado. O fato de o período de aviso ser computado no tempo de serviço para todos os efeitos legais, de acordo com o que estabelece o artigo 487 da CLT, não torna o valor da indenização a ele referente passível de incidência de contribuições previdenciárias. A verba não se enquadra na definição de ‘salário-de-contribuição’, feita pelo inciso I do artigo 28 da Lei 8.212/91, que abrange somente os rendimentos pagos como contraprestação pelo trabalho, entre os quais não se inclui o valor do aviso prévio indenizado, porque não se trata de rendimento pago pela execução de serviço ou trabalho. A teor do inciso I do artigo 150 da CF, a norma instituidora de tributo incide somente sobre as hipóteses nela especificadas, não havendo espaço para interpretação que inclua no seu raio de ação os fatos não definidos por ela como geradores do crédito tributário.” (TRT3, 4ª Turma, RO nº 01064-2007-067-03-00-4, Rel. Des. Federal LUIZ OTÁVIO LINHARES RENAULT, DJ 26/04/2008)
No mesmo sentido é o entendimento do TST (2ª Turma, RR nº 792/2004-009-04-00.0, Rel. Min. RENATO DE LACERDA PAIVA, DJ 19/12/2008; 8ª Turma, RR nº 330/1996-001-04-00.0, Rel. Min. DORA MARIA DA COSTA, DJ 12/12/2008; e 2ª Turma, RR nº 919/2005-046-12-00.8, Rel. Min. RENATO DE LACERDA PAIVA, DJ 21/11/2008).
O respeito aos comandos constitucionais e limites impostos pela Carta Magna são premissas inarredáveis no Estado Democrático de Direito. Assim, se o texto constitucional somente permitiu que o custeio da Seguridade Social tenha como uma das fontes a tributação sobre as remunerações (contraprestação dos serviços realizados), não é justo, razoável ou constitucional que se pretenda, por legislação rasteira, ultrapassar as barreiras impostas, como parece desejar o Decreto 6.727/2009.
Por Valter Lobato e Frederico Menezes Breyner
Fonte: www.conjur.com.br